PROVA –
EFETIVIDADE DE DIREITOS – 2º BIMESTRE
Bruno Barreto
Mesiano Savastano
O Bicho
“Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava
alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era
um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu
Deus, era um homem”.
- Manuel Bandeira
Nasci e fui criado em Ilhéus, terra de Jorge
Amado, no extremo sul da Bahia, onde a pobreza e falta de oportunidades são tão
latentes e constantes quanto o azul do céu sobre as cabeças dos que lá habitam.
Quando ainda muito jovem entrei em contato com este poema do Bandeira, que me
moveu mais do que qualquer outra frase, história ou cantiga com a qual tivesse
entrado em contato até então. Dez linhas que me marcaram pela eternidade.
Eu não conseguia compreender naquela época o que poderia levar um homem àquele estado; o que poderia se passar com uma pessoa para que ela fosse reduzida à condição de bicho, ou menos que isso, à condição de monstro – por deixar que outros homens se tornassem bichos.
Quando tinha não mais que 12 anos de idade o colégio em que estudava organizou uma excursão - o destino era o lixão da cidade. Estávamos aprendendo sobre o lixo, sua toxicidade e sobre o problema de como se livrar dele sem afetar o meio ambiente. A Toyota que carregava as 10 crianças pela imundície, no entanto, limitou-se a uma breve e superficial visita; vimos o lixo, sentimos seu cheiro... Havia casas de madeira montadas em meio a ele. Passamos em frente a uma delas e pude ver algo que jamais esperaria: dentro da casa não havia nada além de espaço. Não havia móveis. Não havia eletrodomésticos. Não havia azulejos, cama, pia, privada, nada além de espaço. À frente da casa uma mulher avistava a Toyota como uma espaçonave jamais vista; era magra, tinha um rosto fundo, barriga saliente e o olhar mais vazio que já vi não pertencer a um cadáver... Tétrica figura.
Voltamos para nossas casas, todos impressionados com o que havíamos visto. Em minha imaginação à noite, deitado em minha cama quente no ar-condicionado, sob o cortinado que me protegia dos mosquitos, aquela mulher era o único ente presente. Onde dormiria?! Estaria só?! Eu não podia deixar de lado o sentimento de que aquela história do lixão não tinha sido contada por completo.
No sábado seguinte fiz um pedido a meu pai: que me levasse novamente ao lixão. Queria ver a história inteira, ou ao menos um pouco mais dela. Ele atendeu meu pedido e lá fomos nós em sua Chevrolet - Blazer.
Inicialmente, tudo parecia o mesmo do que havia visto. Lixo por todos os lados; um fedor descomunal; galinhas; porcos. Um ecossistema próprio de animais despreocupados com a qualidade de suas próprias vidas. Pilhas e pilhas de pilhas descarregadas, fraldas usadas, geladeiras velhas, sacos plásticos rasgados - e tudo o mais que não era desejado - se amontoavam ao redor de um caminho de terra que levava a um vale. No vale, uma só pilha; sobre a pilha, pessoas. Que faziam ali, todas unidas?! Paramos a blazer a uma distância de aproximadamente 100 metros do “evento” e nos pusemos a observar. Do nosso lado passou um caminhão de lixo; para ele se voltaram todos os olhares. O caminhão desceu o vale e ali, sobre o lixo, começou a despejar tudo o que consigo carregava.
Sacos e sacos de lixo eram derrubados em frente às pessoas e até elas rolavam. Como se fossem crianças no Natal recebendo presentes os seres humanos saltavam sobre eles procurando o que pudessem aproveitar: comida, roupa, utensílios, o que fosse. Não sem competição, é claro.
Simultaneamente o faziam os urubus, disputando o lixo com os humanos, num cabo de guerra de detritos; humanos puxando de um lado, do outro, urubus. Esta era a realidade. A história não contada se desenrolava diante de meus olhos. Com o tempo, mais urubus foram aparecendo, a ponto de expulsarem dali os humanos, com seu número. Derrotados, como mineiros que mais uma vez não encontraram ouro, voltaram para suas casas.
Os humanos haviam perdido a batalha; e era uma batalha que perdiam regularmente.
Eu não conseguia compreender naquela época o que poderia levar um homem àquele estado; o que poderia se passar com uma pessoa para que ela fosse reduzida à condição de bicho, ou menos que isso, à condição de monstro – por deixar que outros homens se tornassem bichos.
Quando tinha não mais que 12 anos de idade o colégio em que estudava organizou uma excursão - o destino era o lixão da cidade. Estávamos aprendendo sobre o lixo, sua toxicidade e sobre o problema de como se livrar dele sem afetar o meio ambiente. A Toyota que carregava as 10 crianças pela imundície, no entanto, limitou-se a uma breve e superficial visita; vimos o lixo, sentimos seu cheiro... Havia casas de madeira montadas em meio a ele. Passamos em frente a uma delas e pude ver algo que jamais esperaria: dentro da casa não havia nada além de espaço. Não havia móveis. Não havia eletrodomésticos. Não havia azulejos, cama, pia, privada, nada além de espaço. À frente da casa uma mulher avistava a Toyota como uma espaçonave jamais vista; era magra, tinha um rosto fundo, barriga saliente e o olhar mais vazio que já vi não pertencer a um cadáver... Tétrica figura.
Voltamos para nossas casas, todos impressionados com o que havíamos visto. Em minha imaginação à noite, deitado em minha cama quente no ar-condicionado, sob o cortinado que me protegia dos mosquitos, aquela mulher era o único ente presente. Onde dormiria?! Estaria só?! Eu não podia deixar de lado o sentimento de que aquela história do lixão não tinha sido contada por completo.
No sábado seguinte fiz um pedido a meu pai: que me levasse novamente ao lixão. Queria ver a história inteira, ou ao menos um pouco mais dela. Ele atendeu meu pedido e lá fomos nós em sua Chevrolet - Blazer.
Inicialmente, tudo parecia o mesmo do que havia visto. Lixo por todos os lados; um fedor descomunal; galinhas; porcos. Um ecossistema próprio de animais despreocupados com a qualidade de suas próprias vidas. Pilhas e pilhas de pilhas descarregadas, fraldas usadas, geladeiras velhas, sacos plásticos rasgados - e tudo o mais que não era desejado - se amontoavam ao redor de um caminho de terra que levava a um vale. No vale, uma só pilha; sobre a pilha, pessoas. Que faziam ali, todas unidas?! Paramos a blazer a uma distância de aproximadamente 100 metros do “evento” e nos pusemos a observar. Do nosso lado passou um caminhão de lixo; para ele se voltaram todos os olhares. O caminhão desceu o vale e ali, sobre o lixo, começou a despejar tudo o que consigo carregava.
Sacos e sacos de lixo eram derrubados em frente às pessoas e até elas rolavam. Como se fossem crianças no Natal recebendo presentes os seres humanos saltavam sobre eles procurando o que pudessem aproveitar: comida, roupa, utensílios, o que fosse. Não sem competição, é claro.
Simultaneamente o faziam os urubus, disputando o lixo com os humanos, num cabo de guerra de detritos; humanos puxando de um lado, do outro, urubus. Esta era a realidade. A história não contada se desenrolava diante de meus olhos. Com o tempo, mais urubus foram aparecendo, a ponto de expulsarem dali os humanos, com seu número. Derrotados, como mineiros que mais uma vez não encontraram ouro, voltaram para suas casas.
Os humanos haviam perdido a batalha; e era uma batalha que perdiam regularmente.
Hoje, ao pensar naquelas pessoas, me
emociono como então me emocionei. Vi o bicho do Bandeira em seu habitat
natural. Verdadeiros bichos. Bichos ao ponto de eu me perguntar se aqueles
bichos sabiam falar. Despidos de humanidade, bichos.
Quanto às certezas e dúvidas que tenho no
que se refere à efetividade de direitos, devo dizer que não tenho qualquer
certeza. Apenas dúvidas recaem sobre meus pensamentos. Assim deve ser.
De quem é a culpa daquilo?! Do estado,
ausente?! Da sociedade, ausente?! Do capital, ausente?! Estado, sociedade e
capital estão ausentes?! Há efetividade de direitos naquela realidade?!
Bem, há quem diga que aquelas pessoas
estavam excluídas da sociedade, do Estado e do capital; que estavam desprovidas
de direitos, ou ao menos de sua efetividade.
Eu me pergunto: haveria esta realidade se não houvesse Estado e capital?! Os direitos garantem ou limitam a liberdade daquelas pessoas?!
São muitas as perguntas que minha filosofia anarquista não permite ainda responder, mas me parece claro que a condição em que aquelas pessoas se inseriam não passa de uma consequência do modelo social existente. Um reflexo da realidade, sem maquiagem. Um universo em si, provido apenas de restos.
Aquela é a sorte de quem não se conforma ao modelo atual; são as pessoas que não servem sequer para serem escravos do sistema. Livres! Absolutamente livres – para nada.
Enquanto isso, há os que são livres para algo, como Blazers, camas e ar-condicionado, escravos ignorantemente voluntários do sistema, escravizando o sistema, consumindo o sistema e despejando os restos sobre as cabeças das pessoas. A desigualdade social é um pressuposto do capitalismo; uma condição imposta pela hierarquia.
O modelo de Estado imposto à sociedade me parece cada vez mais uma farsa que se apresenta como uma solução aos problemas da sociedade e é, na verdade, uma ameaça à convivência igualitária. A constituição, tão bela e aparentemente bem-intencionada serve muito mais aos poderosos que àqueles de quem o poder foi usurpado há muito tempo, como é natural que seja. Àquelas pessoas me parecem não faltar direitos; me parece nunca ter estado tão presente sua efetividade. O que lhes falta é dignidade. Todos têm direito à dignidade humana?! Quem é o Estado para nos conceder este direito?! A dignidade é mais que um direito, ela é uma condição para a humanidade. Sem ela não passamos de bichos, como o do Bandeira.
Eu me pergunto: haveria esta realidade se não houvesse Estado e capital?! Os direitos garantem ou limitam a liberdade daquelas pessoas?!
São muitas as perguntas que minha filosofia anarquista não permite ainda responder, mas me parece claro que a condição em que aquelas pessoas se inseriam não passa de uma consequência do modelo social existente. Um reflexo da realidade, sem maquiagem. Um universo em si, provido apenas de restos.
Aquela é a sorte de quem não se conforma ao modelo atual; são as pessoas que não servem sequer para serem escravos do sistema. Livres! Absolutamente livres – para nada.
Enquanto isso, há os que são livres para algo, como Blazers, camas e ar-condicionado, escravos ignorantemente voluntários do sistema, escravizando o sistema, consumindo o sistema e despejando os restos sobre as cabeças das pessoas. A desigualdade social é um pressuposto do capitalismo; uma condição imposta pela hierarquia.
O modelo de Estado imposto à sociedade me parece cada vez mais uma farsa que se apresenta como uma solução aos problemas da sociedade e é, na verdade, uma ameaça à convivência igualitária. A constituição, tão bela e aparentemente bem-intencionada serve muito mais aos poderosos que àqueles de quem o poder foi usurpado há muito tempo, como é natural que seja. Àquelas pessoas me parecem não faltar direitos; me parece nunca ter estado tão presente sua efetividade. O que lhes falta é dignidade. Todos têm direito à dignidade humana?! Quem é o Estado para nos conceder este direito?! A dignidade é mais que um direito, ela é uma condição para a humanidade. Sem ela não passamos de bichos, como o do Bandeira.